Mumbai – 05th – 08th September 2008

Meu irmao colecionava ‘comics’ importados. Lembro que num destes haviam algumas historias que se passavam em cidades grandes e, para realcarem a decadencia urbana, os autores as vezes desenhavam um cenario de predios rachados, ratos pelos lixos, mendingos pelas sargetas, pessoas desenhadas como vultos negros perambulando por entre becos.

Quando chegamos em Mumbai, as cinco da manha, foi este cenario que me veio a cabeca. Da estacao, pegamos um trem urbano e, entre vagoes lotados, alguns de pessoas, outros, de uns sacos enormes, chegamos ate a estacao central. Dali, pegamos um taxi, que aqui sao chamados de ‘bumble bee’, pois sao amarelos e pretos, pequenininhos e meio arredondados, parecem mesmo umas abelhinas e em poucos minutos chegamos a area de Colaba.

O taxi nos deixou bem em frente a India Guest House. Chegamos ali meio que sem querer, mas o lugar para nos e historico. Estou lendo no momento ‘Shantaram’, um livro excelente que conta a historia veridica (dizem) do autor, um ex-prisioneiro australiano que fugiu da cadeia e foi cair em Mumbai, onde viveu por varios anos e ali, como no livro, foi o primeiro lugar que ele chegou.

Nao sei se o Gregory Roberts (o autor) teve a mesma visao que nos, mas o predio estava todo forrado por tapumes. A porta de entrada, bem nao tinha porta, era apenas um buraco na parede. Subi as escadas e aos poucos, fui notando que o que estava mantendo as paredes unidas eram ripas de madeira enormes, atreladas umas as outras. As pousadas dos andares abaixo estavam fechadas, provavelmente ja haviam deixado o predio. Conversamos com o gerente e tentamos conseguir um quarto, mas ele queria nos cobrar duas diarias, uma das 6 da manha ate o meio-dia e outra do meio-dia em diante, o que achamos um absurdo.

Saimos pelas ruas de Colaba atras de outro lugar para ficar. Ratos enormes passavam pela rua. Fora de brincadeira, cara, nunca vi ratos deste tamanho em minha vida. Vi o primeiro, vi o segundo, ai desencanei, ali, eu sou a estranha, a estrangeira. Eles estao apenas no habitat normal deles e outra, na India, o melhor e nao procurar, porque voce acha. Acha barata, acha rato, acha umas coisas nojentas.

O ar de Mumbai e outra coisa que ficou na minha cabeca. Kerala cheirava a especiarias, Goa cheirava a haxixe, mas Mumbai…Mumbai cheira a lixo. Mas nao um lixo comum, sei la, tem um odor que e uma mistura, de restos de comida, com urina, um cheiro tao forte, que mesmo depois de senti-lo, ele ainda fica na sua memoria. Ate agora nao consigo esquecer.

Achamos um outro hotel, nas proximidades. O quarto, era o mesmo esquema da India Guesthouse, uma divisao feita com reparticoes, como aquelas de escritorios antigos, sem janela, apenas uma gradinha no topo da parede para nao morrermos sufocados. O banheiro? Coletivo.

Estavamos mortos de cansados entao ficamos por ali mesmo. Descansamos algumas horinhas e quando iamos saindo, comecou a moncao. Pela janela pude assistir a chuva, que comecou de repente, mas com uma intensidade animal e logo as calcadas comecaram a formar pequenos rios.

Sem chances de ela passar tao cedo, assim que a tempestade foi fraquejando, saimos para conhecer a cidade. Das imediacoes de nosso hotel, ate a avenida principal, as calcadas durante o dia ficam lotadas de barraquinhas de camelos e gente vendendo comida na rua. E um transitar de pessoas, rickshaws, cachorros, vacas intenso, e as vezes me pergunto se vim passar as ferias na ’25 de Marco’ em Sao Paulo.

A chuva estava diminuindo mas algumas (varias) pessoas na rua, com jarras na mao, recolhiam a agua que escorria dos toldos. Achei aquilo estranho, mas continuamos nosso caminho ate o Colaba Market.

O mercado e bem simples, com barraquinhas vendendo panelas, artigos para casa bem como alimentos.

Estamos na epoca da celebracao do Deus Ganesh, aquele que tem a cabeca de elefante e, em nosso caminho, varias tendas foram armadas para a adoracao do idolo. Incrivel como com tao pouco, eles conseguem montar um templo, apenas armando a estrutura com bambu, amarrado e a cobrindo com sacos de lixo. Dentro, a imagem do Deus e toda cercada por flores, incensos e oferendas.

Dali, seguimos para o ponto central de Mumbai, o ‘India Gateway’, uma especie de arco de triunfo, que tambem funciona como o ponto  de desembarque de varias balsas para as ilhas proximas.

O monumento foi construido em 1924, para comemorar a visita real do Rei George V as Indias, na epoca em que ainda era conhecida como Bombay (a cidade mudou de nome em 1995, como varias cidades da India).

Os portugueses foram os primeiros europeus a chegar ali e a transformaram em colonia em 1534. Em 1661, eles a usaram como ‘dote’ para celebrar o casamento entre Catarina de Braganca e Charles II, da Inglaterra. Esta por sua vez, ‘arrendou’ a cidade inteira para a Compania Inglesa das Indias Orientais, por meras 10 libras esterlinas por ano!

Bombay, por ostentar um dos mais importantes portos do pais, experienciou um periodo de extrema prosperidade  durante a  Guerra Civil americana, ja que substituiu a America do Norte no fornecimento de algodao para a Inglaterra.

Em 1960, o estado foi dividido de acordo com criterios linguisticos e assim, a cidade tornou-se a capital do estado de Mararashtra e hoje e a mais populosa cidade indiana, com mais de 16 milhoes de habitantes.

A grande populacao deve-se tambem a intensa onda migratoria que existe dentro da propria India, abrigando refugiados vindos das mais diversas areas, acometidos por calamidas como enchentes, secas, ou apenas extrema pobreza.

Muitos deles, como acontece em grandes metropoles (como Sao Paulo) chegam sem ter quaisquer recursos financeiros e a solucao mais obvia e ir para as favelas, que se aglomeram pelos quatro cantos da cidade. Uma unica favela da regiao abriga mais de um milhao de  pessoas!

Saindo dali, fomos ate um templo Jaina, uma religiao anciente da India, onde estava acontecendo um festival religioso. Assistimos um pouquinho da celebracao, onde varias oferendas eram colocadas bem a frente das estatuas de seus idolos.

Seguimos nosso itinerario, e tentamos encontrar a Torre Parsi, que e utilizada pelos praticantes do zoroatrismo como um rito funerario de seus entes queridos. Segundo a religiao, nenhuma parte do corpo humano deve ser desperdicada e desta forma, os corpos nao sao enterrados nem cremados. Sao deixados ao topo desta torre, para serem devorados pelas aves de rapina.

O lugar nao permite a visita de turistas e, desta forma, foi praticamente impossivel encontra-lo, ja que nas redondezas nao encontramos nenhuma sinalizacao, o que foi uma pena.

A noite, voltamos as ruas de Colaba. A regiao toda ferve mais ainda durante a noite, entre turistas, camelos e transeuntes em geral, que a cada passo aparecem ao nosso lado para oferecerem algo diferente….Tenho a impressao que ali, voce encontra o que voce quiser, a qualquer hora.

Chegamos ao Leopolds, um bar local no inicio da noite. O bar povoou minha imaginacao diversas vezes, pois foi palco central de diversas desventuras no livro que estou lendo e, segundo o autor, nos anos oitenta era um ‘hang out’ de ex-pats, traficantes, junkies, e figuras da noite em geral. Atualmente, parece ser o ponto de encontro de fas (como eu) desta otima obra, que caiu no gosto de mochileiros do mundo todo (encontrei muitas, mas muitas, pessoas mesmo lendo o mesmo livro, durante nossa estada na India).

No caminho de volta, as barraquinhas estavam fechadas e os vendedores, dormindo sob elas. Nas calcadas, familias inteiras dormindo tranquilas. Ao ver a expressao serena que elas mantinham em suas faces, comecei a me sentir como se estivesse entrando no ‘quarto’ das pessoas, durante a noite e, acho que de certa forma, estava mesmo.

E ai entendi a cena das pessoas recolhendo a agua das chuvas: provavelmente, e a oportunidade delas de tomar um banho rapido, lavar as maos, ou apenas matar a sede.

Mas apesar da situacao de miseria constante, Mumbai nao e deprimente, pelo contrario, apesar da caoticidade de suas ruas, do exagero de todos os pecados urbanos, a sensacao geral e de que tudo esta no seu lugar certo. E uma sensacao de paz que, confesso, muitas vezes nao senti em lugares mais ‘civilizados’, como Londres. E aos poucos, fui me sentindo parte dali. Nao sei se estou fazendo sentido, mas me senti segura, em paz.

No dia seguinte, fomos conhecer os mercados da regiao, na cidade ha dezenas de bazares, cada qual com a sua caracteristica, escolhemos pelo bazar que vende bijuterias, e seguimos para la.

Quanto mais nos aproximavamos, a aglomeracao de pessoas parecia ser maior. O fluxo era extremamente intenso e a certa altura, fui pega no sentido contrario  e aos poucos, fui me afastando do Al. A sorte foi que encontrei um destes carregadores, que com seus cestos enormes sob a cabeca, nao perdem tempo neste vai-e-vem de gente e, como ambulancias no transito, foi abrindo o caminho para mim.

Nao aguentei. Quando encontrei o Al, dei-me por satisfeita com tudo o que vi e pulamos dentro de um onibus, que lentamente fazia o seu caminho entre aquele mar de pessoas.

Dali seguimos para Chowpatty Beach, nas imediacoes da estacao de Charni Road. Nao estava esperando nadar nem deitar na areia, pois ja havia ouvido falar que o mar e super poluido, ja que varias favelas nas imediacoes o utilizam como banheiro. Mas para passar uma tarde foi uma boa escolha. A pena e que o unico bar na costa estava fechado, entao, fizemos como as varias familias que estavam por ali e paramos nas barraquinhas de comida.

A noite, decidimos ir ate o cinema, ja que estamos bem no coracao da industria de Bollywood, onde mais de 8000 filmes por ano sao produzidos. Infelizmente, nenhum dos filmes em cartaz possuia lengenda em ingles, entao, para nao perder a viagem, nos contentamos em assistir ‘Wanted’.

O filme em si era meio mediocre, mas a experiencia foi um tanto interessante: antes dele comecar, tivemos que ficar de pe, enquanto o hino nacional da India soava nas caixas de som do cinema e, vez por outra, pessoas da plateia dialogavam com os atores.

Ao final, pegamos um dos taxis-abelhinas, que naquele transito, formavam um enxame e seguimos para o hotel.

A manha seguinte, voltamos ao India Gateway e pegamos uma balsa ate a Elephanta Island, uma ilha nos arredores de Mumbai. Na ilha, depois de subirmos uma escadaria enorme, chegamos a um parque, onde varios macaquinhos rodeavam os turistas em busca de comida.

Visitamos as Elephanta Caves que são templos escavados na rocha e uma vez dentro deles, pudemos observar inúmeras esculturas gigantescas de Shiva e Parvati. A mais importante estátua é a Mahesamurti, que apresenta as três faces de Shiva.

O final da tarde, usamos para circular pela cidade, meio que sem destino. Sem querer, caimos dentro de uma favela. Passeamos por entre as vielas, entre os casebres, feitos dos mais diversos materiais. Criancas brincavam pela rua, senhores conversavam em bancos de madeira, mulheres lavavam as roupas em tanques feitos de concreto e, fora um ou outro pedinte que nos abordava, a maioria das pessoas pareciam ocupadas demais com seus afazeres cotidianos para notar nossa presenca.

Voltamos a noite ao Leopolds, para nossa ultima noite na cidade. Ali, conhecemos um inglesinho que estava parcialmente morando em mumbai. Alias, principalmente no estado de Bangalore, varias empresas inglesas parecem estar se estabelecendo no pais, devido a facilidade de mao de obra qualificada e, claro, muito mais barata que na Inglaterra.

Alias, este esta sendo um dos grandes fatores de desenvolvimento economico do pais, que dizem ser um dos maiores mercados emergentes do futuro.

Mesmo com seus pedintes, mesmo com o lixo na rua, mesmo sem as pessoas terem latrinas. A India e mesmo um pais de contrastes.

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